18.10.08

Inimigo íntimo

Demorou, mas as cigarras berram em Brasília.
Este ano, fiquei um tanto ansiosa com esse tempo longo para sairem da terra.
Eu adoro reclamar das cigarras! E morro de medo delas também!

Geralmente, anunciam a primeira chuva e por aqui ficam até quase o Natal.
Os ipês se despedem, entram as cigarras, os içás - que são formigas aladas - e finalmente, os flamboyants e a chuva de verão.

O hiato entre agosto e setembro nunca demorou como este ano.
Espero, espero e numa noite calorenta, as janelas escancaradas convidaram -
A cigarrinha entrou rápida no seu zunido particular.
Bateu no vidro, na parede, na luminária e tuft! - entrou por entre o lustre a lâmpada!
Gritaaaava!
Num salto de susto, apaguei a luz! O que mais poderia eu fazer?
Ela vai morrer presa ali.

Me deu uma profunda tristeza e um medo terrível - a criatura que detesto tanto, vai morrer presa, aqui na minha casa!
Ela morreu mesmo, vejo a sombra dela quando acendo a luz. Não tenho coragem de tirar o lustre para jogá-la no lixo. Eu tenho medo de cigarras mortas também.

E lá estava ela até ontem à noite, no calor insuportável que temos tido por aqui: a janela é a moldura de um quadro onde lá fora nada se move. A jaqueira parece pintada ao lado dos carros e prédios. Vidros devem ficar abertos!

Não sopra vento, mas... eis que outra cigarra vem me visitar! - Das grandes!
Fico ali, no computador, fazendo de conta que nem ligo. Ela, em silêncio, está na cozinha. E por ali fica, sem cantar (o que me faz pensar que deve ser fêmea, pois somente os machos cantam para acasalar. E aliás, não é cantar com a garganta; é uma espécie de fricção do abdomem.)Me convenço que isso é um absurdo, apago tudo e corro pro quarto de dormir.

Não passava das 7 da manhã, a cigarra me acordou hoje. Com muito calor, fui pro banho morta de preguiça e medo - ela ainda está viva! Por que não foi embora daqui?
Vesti uma roupa e chinelos, e apelei para o novo porteiro do prédio.
Quando subiu de vassoura em punho, comentou:
- Eu vou matar ela pra jogar fora.

Senti um golpe no estômago. Ela já estava meio moribunda, lerda, andando pelo chão branco, perdida e calada. (Vai ver que era por isso que buscara refúgio, um lugar longe das outras, felizes e cantantes.)
Matar uma cigarra? Outra?
No outro canto do apartamento, ouvi as vassouradas baterem forte no chão da cozinha.
Para cada baque, um pulo no meu coração. Me deu vontade de chorar.
O porteiro varreu a cigarra morta pra fora de casa.
Fechando a porta, senti uma solidão profunda.

No Templo, o monge Haritane falou das cigarras. Como demoram pra sair da terra para cantar por pouco tempo - como nós, que demoramos tantas vidas para chegar à iluminação.
E daí, comentou que uma cigarra entrou na casa dele. Como a minha visitante, aquela era fraca e doente. O monge deu a ela água com açúcar e conviveu com o tal ser por um longo dia até a cigarra morrer naturalmente. - E aí, eu fiquei triste - ele acrescentou.
E eu, mais ainda.

4 comentários:

  1. ainda bem q vc existe, q seu blog existe e q suas palavras me confortam do meu ordinário viver cotidiano...
    =)

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  2. o Buda está dentro das cigarras também?
    ou só as abelhas são privilegiadas?

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  3. Uma cigarrinha quis entrar na minha casa hoje, lembrei de você. Se esgoelou na janela, se debateu no vidro, fez de tudo e eu não deixei. Aqui dentro é muito perigoso. Mas lá fora também.

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  4. anônimo, pensei um tempão sobre esta pergunta porque queria te dar uma resposta espertinha...
    mas, sinceramente, eu não sei responder.
    porque eu quero que resposta seja sim, mas entre o querer e o ser há tantas distâncias...

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