Na verdade, na verdade, a Dona Rosália foi a mulher que fez meu primeiro teste e me encaminhou para as aulas com a Regina. Agora, ela mudara para ainda mais longe - mas ensinava crianças de todas as idades, inclusive meninas de sutiã.
Recebia dois a três alunos por vez, enquanto um fazia a prática, os outros dois faziam teoria.
Não fiz amizade com ninguém, era imperativo manter meu mau humor. Eu ia a pé, depois do almoço, no sol de escaldar. Continuava detestando as aulas e amando praticar em casa. Não havia nenhum motivo aparente para ter amigos.
Mesmo assim, Dona Rosália era uma vovó carinhosa, distraída e engraçada sem querer. Fazíamos aulas na área de serviço e no quarto de empregada da casa dela. Eu nunca entendi como aquele piano entrou naquele quartinho...
O que eu mais me lembro da Dona Rosália era mesmo o cheiro de vovó, os olhos azuis, a voz fanha cantando as notas. Contava sempre um caso sobre alguém talentoso mas preguiçoso, enfatizava a importância da prática fora das aulas e elogiava minha postura correta, as mãos ágeias mas pequenas demais...
Ela ria sempre, elogiava todos sempre, mas nunca sentou-se ao piano para tocar.
Na chegada da adolescência, ela era o último resquício da minha infância.
E sabendo disso, me deu um novo endereço num papel. Era hora de estudar música num conservatório. Eu já estava moça, precisava aprender teoria pra valer. Aulas informais eram para crianças, eu deveria conversar com meus pais e convencê-los de pagar um conservatório. Andei no sol pensando se eu já estava convencida da idéia. A resposta era óbvia - não.
Eu não tinha a menor vontade de estudar música clássica num conservatório. Mas não sabia dizer não aos meus pais. Assim que soubessem que a Dona Rosália não me daria mais aulas, eu teria que estudar no conservatório.
Faria 12 anos em breve.
E pensei que a única manobra inteligente seria negociar a música pela dança. Só ficaria no piano se finalmente pudesse dançar jazz.
O zunido das cigarras começava.
As tardes ao piano de casa ficavam mais longas, mais quentes, menos divertidas.
Entendi que eu não queria ser pianista e que para tocar bem de verdade, eu deveria fazer escolhas - mais piano, mais teoria, mais conservatório. Eu não cabia no mundo da música. Ele era restrito demais para as minhas camisetas cortadas, meus anéis da feira hippie, meu cabelo repicado.
Só que tive medo de ser abondonada por este mundo mágico e nunca mais encontrar outro mundo que me acolhesse igual.
Senti um ódio profundo de mim.
Decidi nunca mais tocar bem o suficiente. Seria mais fácil largar a música se eu não tocasse bem.
Entrei em casa, tirei os sapatos e senti os tacos frios nos pés suados.
Agora, era por o plano em ação
Não larga o piano não...
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