2.3.08

Liçoes de piano - parte I

Cresci com um imenso piano Bechstein pós-guerra na sala de estar.
De tanto ouvir que eu deveria, resolvi querer aprender a tocar.
Nos meus sonhos mais alucinados, o piano seria a herança física que levaria daquela casa para a minha própria.

Eu acho que eu tinha uns 8 para 9 anos.
A professora se chamava Regina. Eu ia a pé, depois do almoço duas vezes por semana.
Ela era uma moça de uns vinte e poucos, morava com os pais, mas só conheci a mãe.
O apartamento tinha uma sala de estar grande, apinhada de samambaias, tapetes, cortinas e móveis coloniais.
Cheirava a limpeza, mas também a escuridão.
Mesmo durante o dia, as luzes ficavam acesas, as cortinas fechadas.
Regina era muito pálida, arrastava levemente uma perna, tinha cabelos pretos escorridos e mal cortados
E seus olhos deviam ser castanhos, se os óculos permitissem enxergá-los depois das lentes fundas.
Só vestia camiseta e calça de pano em tons claros. Um relógio dourado. Sem brincos, sem anéis.
Sem conversas.

A aula se resumia em três partes -
Teoria musical
Prática
Solfejo
Eu não sei qual detestava mais.
Aliás, odiava toda a experiência como um todo.
Música é matemática disfarçada. E eu sempre amei letras, não números.
Logo, eu me saía mal em tudo de teoria.
A prática era insuportável. Ouvia a música que deveria tocar, mas meus dedos não obedeciam.
E o solfejo era sempre acompanhado com as milhares de caretas de reprovação da Regina.
Eu tinha o ouvido muito bom. Mas ela sempre aumentava os erros, e nunca, nunca, nunca me elogiou.

Eu tinha 9 anos.
Eu cortava camisetas velhas, usava os brincos de plásticos que achava no armário da minha mãe.
Minhas mini saias mal me deixavam andar. Gostava do contraste das cores e tinha água oxigenada na franja.
Como aquelas aulas de piano clássico poderiam somar?
No meu desejo. De ser aceita, amada, querida. Insisti naquelas torturas semanais por anos a fio...

E por incrível que pareça, aprendi a tocar.
E o mais surpreendente até para mim, era que eu finalmente encontrara um momento só meu
- praticar em casa, no piano da sala.
Em breve, o barulho virou som. O som virou música. A minha, aquela que saía do meu corpo, da minha concentração.
As tardes passavam mais rápido quando ficava em casa. No início, era uma hora por dia. Mas logo, obcecada, estudava duas horas ininterruptas de piano em casa além das aulas.
Eu achara um jeito de gostar de múscia ao mesmo tempo que começava a gostar de mim. A matemática era complexa, mas decidira que seguiria meus ouvidos e meu coração - para mim, as contas dos compassos eram o caminho que eu entendia sem precisar dos números, da pauta, da clave.

Regina era intolerante, impaciente, antipática. Mas, de alguma forma, sabia que não era comigo. Algo me dizia, a cicatriz ao redor do pescoço, como um colar de farpas, era o motivo de tanta amargura, palidez, rebeldia afogada no som abafado da sala escura.
Eu gostei dela duas únicas vezes:
- a primeira, quando a mãe saiu do corredor que dava para os quartos e com uma voz estridente interrompeu minha lição, assim, como a dona da casa mesmo. Regina levantou-se ríspida, e curta e grossa, em alto e bom som, mandou a mãe sair dali porque aquela não era a melhor hora. Fiquei impressionadíssima. Adorei ver Regina responder `a altura, com altivez, com intensidade musical, qualquer pessoa, especialmente a mãe. Ela sentou-se novamente, bufou como de costume, voltamos ao solfejo.
- Numa outra ocasião, Regina me avisou que não me daria aulas por um tempo. Estava entrando de férias. Me entregou num papel, o telefone e endereço da substituta. Valéria seria minha nova professora de piano.

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