6.11.07

Madrugada

Eu acordei às 4 horas para levar minha mãe ao aeroporto.
Era isso ou pedir para a Helena dormir aqui.
A Helena mora no Setor P da Ceilândia. Não tive coragem de anunciar que, no fim de um dia de trabalho, ela não voltaria para casa porque minha mãe não pode dormir sozinha.
A minha mãe sofreu uma cirurgia de retirada de um tumor no cérebro em 2001. Além das prováveis convulsões, ela está desintoxicando de cortizona que ela tomou por estar sentindo dores terríveis no corpo inteiro. Não me pergunte detalhes: quanto mais eu pergunto, mas novidades e sintomas eu ouço. Os exames não acusam nada. Ela diz que acusam sim.
Então.
Digo a Helena para ir embora e não voltar essa semana porque meu pai também está viajando.
Ele e meu avô foram de carro até Assis Chateubriand, no interior do Paraná, quase em Foz do Iguaçu. Meu avô foi deixar uma lápide no túmulo da mãe dele. Ela está enterrada lá há mais de vinte anos. Não entendi porque do súbito desejo da lápide. E não perguntei.
Eu não sei quando eles voltam, mas a casa ficará vazia e não há necessidade da Helena vir da Ceilândia para limpar os banheiros que ninguém vai usar. Ela vai ficar de férias essa semana e ponto final. Não vai cair minha cara de acordar de madrugada uma vez na vida e outra na morte, apesar de que eu gostaria muito de acordar para morte à noite, de preferência de um sono profundo e não de uma doença ou acidente. Enfim.
Às 4h15 saimos de casa. Minha mãe e eu rumo ao aeroporto. Eu estava disperta, sem sono nenhum. Minha mãe seguiu calada ao meu lado.
Reparo na chuvinha fina que cai - se fosse São Paulo, seria garoa - e no fato de que ainda está bem noite mesmo.
Não há uma alma viva na rua. Não sei se há almas mortas, mas elas devem estar escondidas, então.
Jogo esse jogo de procurar um ser, qualquer que seja - pode ser um carro, pode ser um pedestre...não, ninguém em lugar algum. Só luzinhas dos postes, eu, minha mãe. E a chuva fina.
Pego o Eixinho Sul - e lembro que minha mãe gosta de chamar a rua de Eixo Auxiliar - ela diz isso para os motoristas de taxi, e eles ficam confusos. Só aí, ela esclarece - o eixinho de cima, por favor.
Na parada da 10/11 - ali onde ficava o Cine Karim e que depois virou um igreja - agora, será uma academia de ginástica. Não sei se era melhor a igreja. Faz diferença cultuar uma estátua pregada na cruz ou o próprio corpo? Com certeza sinto saudades do incrível e gigantesco Cine Karim. Bem ali, na parada de ônibus, vejo um homem. De relance, claro, estou no carro em movimento. O homem está parado, bem encostado na parede do ponto e de roupa clara. Sinto um leve calafrio - de surpresa ou de medo? - e penso na merda que deve ser você ter que estar de pé às 4h20 da madrugada nessa chuvinha que engana trouxa para ir trabalhar. Mas, estando ali tão cedo, pode também estar voltado do trabalho noturno, uma canseira no corpo úmido. Ou acabou de ver seu amor, sua querida, e recosta o suor na parede úmida feliz feliz...Me dá uma raiva súbita dos pontos de ônibus desenhados por pessoas que nunca pegam ônibus.
A chuva engrossa um pouco já na saída do Eixo Auxiliar Sul - estamo na descida do zoológico, onde o asfalto tem um cheiro de floresta. É. O mato do zoológico quase invade a rua, e perfuma tudo tudo. Com a chuva, parece que estamos a horas da cidade. Mas ainda nem chegamos ao Balão do aeroporto.
Minha mãe faz o primeiro comentário - que nesse local em poucos minutos, o trânsito será um inferno. Concordo com a cabeça. Chegamos.
Ali no aeroporto, muitas almas vivas - outras com caras de mortas - nos despedimos e ela me pede para ligar quando chegar em casa. Fico surpresa. Dou um beijo na bochecha gelada e entro no carro.
Eu dirijo agora sozinha, pelo Eixo Auxiliar Norte - o eixinho de baixo - e penso que vou escrever aqui, que vou chegar em casa, que vou tomar um banho e tentar dormir ainda um pouco, que estou sem fome, sem sede, sem sono. Que minha mãe é uma mulher incrível. Que tenho saudades da minha infância. Que há tempos ninguém pedia pra eu ligar quando chegasse a salvo em casa. Coisa de mãe. Passo por outro ser, deitado no banco de um ponto. Talvez seja uma alma viva, talvez morta.
Jogo o jogo de torcer para que todos durmam nessa madrugada chuvosa e calada. Menos eu.

Um comentário:

  1. nao sabia q vc tinha voltado a escrever aqui. é irresistìvel, certo? assim como é irresistível ler o q vc escreve, amiga!
    tô longe, mas torcendo pra vc estar bem...
    bjossssss

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