29.9.06

Pirlim-pim-pim !

Com o pó do pirlim-pim-pim,
Sumo desse mundo que estou.

E caio na cidade fantástica

Lá, meu apartamento já está pronto, tem até plantinhas
Todos os peixes do meu aquário, pulam, chamam, ligam
Só pra mim

A ilha de edição é no meu escritório
E quem assina a montagem de todos os longas sou eu!

Minhas roupas estão novas
Mas confortáveis
Eu nunca mais engordei
Mesmo comendo todas as sobremesas de chocolate!

Tenho todo o tempo do mundo para ler tudo que acumulei nas estantes
E ver pilhas de DVDs sem sair de casa nem para comer
Porque vou pedir sushi, chinesa, e até pizza!

Ah, claro!
Eu vou trabalhar somente com os projetos legais
E ainda assim, vai sobrar dinheiro
Para viajar
Para viajar
Para viajar!

E de todo lugar que eu voltar
De Istambul à Tóquio
Vou trazer uma souvenir
Para as tantas prateleiras enfeitadas

E minha casa vai estar cheia de saudades de mim
Cheia de flores
Cheia de dengos

E eu vou poder dormir no mais absoluto silêncio
Todas as noites da minha vida
Ou ficar acordada
Em todas as farras merecidas

E tomar os banhos mais demorados
A luz de velas
Com o som super alto

Os caras me amam
Meus amigos me amam
Até eu me amo!

E antes do efeito acabar,
Agarro rapidamente e escondo na palma da mão
Todos os desejos
Todos os sonhos
As pequenas vontadinhas

E trago para cá
De onde ainda não saí.

28.9.06

Sonho

Hoje eu fui lá na obra bem cedo.
O pessoal do espelho e das prateleiras foi instalar o resto que faltava.

Eu tava cansada, meio chatinha...sentei em cima da pia e dei uma cochilada...
E sonhei.
Que estava ali mesmo, na minha casa.

Cozinhando , ouvindo música, de camiseta e calcinha...
Todos os detalhes tão reais!

Acordei sorrindo.
Logo, logo, não será preciso acordar!

27.9.06

Surpresa

Eu me surpreendo sempre
com a ignorância de uns

E a tenacidade de outros.

Como uns me subestimam
Outros me ignoram
E outros me temem!

Como de um lado sou domada
E do outro, sou feroz leoa

E no final
Aqui, bem no fim

Eu sempre soube
Que era isso mesmo que seria de mim!

25.9.06

Montagem


Para mim, a questão da montagem é basicamente intuitiva.

A minha formação em dança e música influenciam tudo que faço na ilha de edição.

O ritmo das coisas do mundo são montadas na minha cabeça. E levo tudo para a ponta dos dedos; para a pupila, pros lábios tensos pelo resultado PERFEITO.

E por tudo isso, sinto uma necessidade imensa de desconstruir.
O ritmo, o som, as cores.

Tenho vontade de desmontar o mundo real e remontar todo de novo, fora do ritmo, do meu ritmo
– de bailarina, de pianista, de mulher.

Eu quero transgredir tudo – pelo simples prazer de fazê-lo.
Não interessa o resultado, e não faço questão de justificar.

Mas, se fosse para inventar uma boa desculpa, aí vai -
A função de cada ser humano deve ser a de incomodar o outro, tirar as coisas das suas respectivas caixinhas.

Eu falo de sensação, de sentimento. Eu falo de chatear, aborrecer, irritar.
Com a montagem, com a imagem, com a surpresa de um gesto onde não haveria tal possibilidade!

Admirar o que existe, mas com o olhar sempre questionador.
Questionar com o intuito de ser eternamente curioso, inquieto.
Provocar o outro.
Me sinto instigada a traçar um caminho torto, finalmente.
E com isso também vem um desejo crescente de anarquizar!

Eu quero montar o que não tem montagem.
Eu quero editar um monólogo de silêncio.







Vidar real imaginária

Um final de semana de trabalho intenso e frustrante.
Um projeto que não tem fim, me exaure todas as forças!
Então, por que estou tão bem humorada, engraçada, saltitante?

Porque meu amigo, é bom estar na minha pele.
É bom estar chateada com a ilha que não funciona.
É ótimo sentir a tensão no olhar de um alguém que me vê sem poder resistir.
E melhor que tudo, patinar com música ensurdecedora e esquecer de tudo isso quando o vento bate nas bochechas.

A minha presença física é hoje o reflexo real da minha alma no mundo.

Que alívio ter um corpo que tantas vezes é mais sábio que minha cabeça!
E que delírio é ter uma cabeça cheia, mas pronta para estar vazia quando a alma pede.

Eu tenho o poder de achar que posso tudo que quero.
E dos tantos quereres
Todos eles
Se realizam
Um a um
Dia após dia

Na vida real real
Ou na vida real da minha imaginação.

24.9.06

Escrever para lembrar

O sinal de que estou cansada é esquecer objetos - para uma virginiana, isso é fatal.
Saí da TV ontem e não me lembrava de jeito nenhum onde estacionei o carro.
Na rampa? No anexo? Fui andando devagar para retomar minha chegada no início da tarde.
EU SIMPLESMENTE NÃO TINHA ISSO REGISTRADO!
Me deu um início de pânico.
Pela manhã, esqueci a chave da obra em casa, a chave do carro na obra, o celular em cima da cama.
Esqueci de pagar a terapia. Paguei o celular atrasado.

Estou exausta de olhar para telas de computador, e aqui estou eu, sábado à noite, com areia nos olhos, escrevendo compulsivamente.

Se eu estivesse com meu Ipod, patinava antes de ir trabalhar amanhã.
Mais um domingo sem sol para mim.

Dois jantares consecutivos de cachorro quente - tem algo de bom aí!

Eu de verdade, tenho tudo que eu quero ao alcance das mãos. Mas todos os tudos estão virados para outros lados...é preciso um cutucão no ombro...e isso cansa, cansa.

Vou dormir e sonhar sonhos sem imagens, sem sons.
Seria um alívio apagar o cineminha que funciona na minha cabeça?

22.9.06

Eu vou me assassinar

Tem um eu velho correndo atrás de mim!
Tá viva! Socorro!
Quer me encaixar na culpa católica
No cumprimento correto das tarefas impostas

Na antecipação certeira do futuro distante
Nas reações pré-concebidas das atitudes de todos os seres

E da punição,
Da inquisição,
Das inúmeras chibatadas
por todos os erros e os pequenos acertos que estavam fora do previsto

E minimiza tudo que é bom
Ironiza os caminhos tortos
Ri da vontade de celebrar
O espelho
O sorriso
O desejo

Eu vou comprar um veneno no mercado
E matar essa euzinha velha
Devagarinho, sufocada
Na falta de ar
Na falta de assunto
Na simples ausência
Com a maior indiferença
Que eu - porra louca de fato e de direito
Consigo ser!

21.9.06

O crepe sem sal

Eu sei exatamente o que não quero. Mas só lembro quando está ali, olhando pra mim do outro lado do meu crepe de funghi.
Acho difícil ser direta - imagine! - e vou aos poucos me acostumando com o desconforto quando de repente
Nossa! O que estou fazendo aqui?
Resumo a conversa, vou embora.

Eu quero ser querida.
Mas é dureza perceber que o outro simplesmente me atropela.
Passa por cima, simply doesn´t get me!

Se sou rápida demais, perspicaz demais, antenada demais - desculpem...
Só que eu me acho única demais, ímpar demais, esquisita demais -
para simplesmente entrar na caixinha de outrem!

Como diz um querido que tenho
Eu não entro na loucura dos outros, não!

20.9.06

Tampa do vidro

Eu vou sair dos meus pais para minha casa definitiva já já.
É engraçado pensar assim porque morei oito anos fora e quando voltei para Brasília, imaginei morar com eles por poucos meses. Isso tem três anos.

Dessa vez, saio de casa pra valer. Mais para eles que pra mim.
De qualquer forma, sinto uma energia enorme concentrada nessa parte da minha vida.
O trabalho, os amigos, tudo parece meio fora de foco, como se eu estivesse colocando muita força pra abrir a tampa do vidro - quando na verdade, é só um jeitinho mesmo.

É que o foco está mesmo nessa mudança -
será que vou ter grana pra me bancar?
não é uma loucura me comprometer por vinte anos a pagar uma prestação?
e se eu não conseguir?
como vai ser a rotina de viver sozinha no Brasil?
o que vai ter na geladeira?

Estou tão feliz que nem percebo.
Tão admirada com o que consegui, que nem mereço.
Estou com um medo do tamanho da minha conquista.

Dessa vez, saio de casa para ser o que sou.
E se eu não for ninguém?

19.9.06

Sei lá...

Eu ando com uma preguiça enorme de escrever aqui.
De pensar, de falar.
Distraída, desconcentrada...aérea.
Cansada das mesmas conversinhas,
Das velhas novidades.

Eu preciso de um tempo para aprender tanta coisa
Mas já sei que nunca vou saber de tudo!

Tenho três livros começados,
Tem a obra que já já acaba
Tem os amigos que não vejo
O volume de trabalho que só aumenta

As coisas nunca foram tão diferentes aqui dentro
No entanto, lá fora, o mundo gira igual igual...

18.9.06

Levei um fora. Mais um.

Quando me calo, me entristeço.
Mas, se falo, afasto quem tanto quero por perto.
Qual será a medida em mim
Para ser quem sou sem assustar ninguém?

Búuuu...

16.9.06

Sem brincadeira nenhuma.
Eu sou uma perfeita idiota.
Burra mesmo. Sem noção.

Ah!
Quero férias de mim!

12.9.06

11 de setembro de 2002

O telefone da ilha de edição é para mim.
Do outro lado, o Ethan me explica que quer aproveitar a distância para terminar o namoro.
Cinco anos.
Se não fosse assim, ele não teria coragem e poderia se arrepender.
Eu não sou divertida o suficiente,
Quero coisas que ele não quer.
Muita pressão essa coisa de estar junto por tanto tempo.
Me ama, mas quer ficar sozinho.
Melhor assim.
Depois ele me manda minhas coisas, que estão na nossa casa.
Minha vida guardada nas gavetas.
O pó dos livros nas estantes, a pilha de CDs no chão.

Na sala cheia de gente, desligo olhando o vazio.
Vazio.
Fundo.
Sem cor.
Vazio.

Ainda bem que eu te amei, Ethan. Você inventou em mim a elasticidade do amor. Por isso, cabe no meu coração pra sempre.

11.9.06

15 de setembro de 2001

Quando a luz dos balcões começaram a acender, fiquei de pé. Eu precisava urgente fazer xixi. Levantei depressa, senti a tontura dos tantos dias sem comer. O homem japonês guardou meu lugar. Na volta do banheiro, a multidão se aglomerava nas correntinhas ao redor dos guichês. Pus minha mochila nas costas. Minhas pernas tremiam. Os militares armados nos forçavam para trás. Eram seis guichês, uns doze atendentes. A fila se desmembrou sem ordem. Cheguei no guichê quatro.
- Preciso ir para o Brasil
- Só quem tem passagens para hoje
- A minha era para o dia 12 de setembro
- Então, lista de espera
- Esperar por qual vôo?
- Terá que aguardar nova abertura do espaço aéreo. Este será temporário.
- Não posso aguardar. Minha mãe está na mesa de cirurgia nesse exato momento. - A voz sumiu. Engoli duas vezes. Os americanos não gostam de drama.
Um outro atendente
- A lista de espera está encerrada
- Eu não posso entrar em lista de espera nenhuma senhor. O que pode fazer por mim?
- Nada.
- Eu não vou sair da sua frente enquanto não me der uma solução.
- Um momento.
- Pronto. Aqui está sua passagem. Embarque imediato. Boa viagem.
Assim. Desse jeito. Olhei ao redor. Não encontrei o homem japonês. Nem a paulista do orelhão.
Liguei a cobrar para o Brasil. Chego em São Paulo ainda hoje. Eu sei. Eu sei. Eu sei. Um beijo.
O vôo mais longo do planeta.
O homem mais americano e chato do universo.
A melhor melhor melhor aterrisagem do espaço sideral.

Senti meu coração. Parei de sentir minhas pernas. Eu flutuei até o desembarque. Caí no chão e beijei o piso preto sujo, encardido, imundo do aeroporto internacional de Gaurulhos, São Paulo.
Meu tio Jorge, me abraçou.
- A sua mãe saiu da cirurgia e está na UTI. Correu tudo bem.
- Eu derramei cinco dias de lágrimas sem sal, sem água, sem cor.
O cheiro do café forte.
O pão de queijo do quiosque.
O delicioso som do português em todas as bocas que eu olhava.

Eu nunca mais saio do Brasil.

14 de setembro de 2001

Dormi muito.
O céu ainda cinza.
O cheiro mais forte.

Tomei um banho.
Comi uma banana e vomitei.
Bebi um chá morno e fraco.
Não sentia a dor de cabeça, as mãos trêmulas eram desde ontem

A CNN afirmava que o espaço aéreo estava fechado.
A ABC confirmava a abertura do espaço aéreo para aeronaves domésticas.
Liguei para o Gaudêncio. Vou para o aeroporto. O espaço aéreo está aberto.
- É só para aernoaves em trânsito. Aquelas que foram forçadas a aterrisar.
- Eu sei. Mas eu vou para o JFK. A chave vai ficar debaixo do tapete. Te ligo do Brasil. Um beijo.

Demorei muito para pegar um taxi. Nenhum motorista queria me levar ao aeroporto, fora da cidade. Todos gritavam que estava tudo fechado.
O dia estava fechado. Começou a chover. Eu não queria chorar.

Um jovem jamaicano me levou até a entrada do aeroporto discutindo comigo a viagem toda. Me deixou debaixo da placa JFK - e peguei o micro ônibus que circula dentro daquela mini cidade de companhias aéreas. As grandes, todas fechadas. Em cada parada, descia, pedia informações. Meus pés doíam do frio. A chuva era mais intensa. Eu não sentia sede.
No balcão da Varig, a passagem de primeira classe tinha fila de espera. O vôo sairia no dia seguinte. Todos dispostos a esperar. A minha mãe vai morrer e eu vou estar na fila de espera da Varig.
Peguei o ônibus e fui ao guichê da JetBlue. Entrei na fila. Na minha vez:
- Por favor, vocês estão voando hoje?
- Sim, senhora
- Para Miami?
- Para Fort Lauderdale
- Hoje?
- Sim
- Mas o próximo vôo está lotado
- Não senhora. Ele sai em 30 minutos
- Eu quero uma passagem

Liguei a cobrar para o Brasil. Estou embarcando para Fort Lauderdale. De lá pego um carro alugado para Miami e vejo o que acontece.
Ao meu redor, como eu, as pessoas estavam super bem.
Aluguei o único carro disponível no aeroporto da capital da Flórida - uma limosine preta extra luxo de seis portas. E contei pro motorista que saí de Nova York para estar na cirurgia da minha mãe no Brasil. Ele voou para Miami.
O aeroporto de Miami estava em guerra.
Pelotões do exército andavam em duplas portando sub metralhadoras.
Não havia o que comer. Refrigerantes, só morno. Ou água dos bebedouros.
As filas gigantes eram para o primeiro vôo do dia seguinte - o destino - São Paulo, Brazil.
Um homem de Tóquio que tentou chegar até Montreal. Uma família de Miami que voltava para La Paz para sempre. Eu.
Liguei a cobrar para o Brasil. Estou na fila de espera. Fique calma, mamãe, não estou mais na linha de fogo. Quando abrir os olhos aí, estarei do seu lado. Minha única lágrima foi enxugada com um lencinho brasileiro, da moça paulista na fila do orelhão.
A noite no chão passou tranquila. Quase todos dormiam. Eu mudei de posição. Dei a volta e inventei uma outra fila, para um outro guichê. Eu tenho certeza que amanhã cedo, quando abrirem os balcões, mais de uma fila será atendida. O homem japonês me seguiu.

Se a minha morresse amanhã cedo, na mesa de cirurgia, tenho certeza - seria um sonho ruim. Então, decidi simplesmente não dormir.

13 de setembro de 2001

Não sei se dormi.
Abri os olhos com o barulho ensurdecedor de aviões rasantes.
O céu muito nublado. Inacreditável. Será que vai nevar?

Os telefones estavam funcionando, a internet também.
As pontes da cidade estavam abertas. O trânsito estava normal.
Falei com Ethan. E com o Brasil. Calma, fria, estava indo ao Serviço de Imigração.

Peguei o metrô até a 14th Street e a 7a. Avenida. Dali, os trens não saiam mais.
Estava em frente a um hospital - uma fila imensa na porta. Doadores de sangue.

Peguei o primeiro ônibus que passou. Lotado. De bombeiros. Um silêncio absoluto.
O ônibus parou na Varick St. com a Houston St. Dali, ninguém mais passava. Só os bombeiros.
Era longe para caminhar até o Serviço de Imigração.
O que eram aqueles caminhões frigoríficos em fila?
Caía do céu uma cinza fina, como de cigarros. Mas bem mais fina.
Um cheiro de incêndio.

Um policial de pé na esquina da Broadway me avisou:
- Não pode passar
- Senhor, eu tinha uma entrevista marcada no Serviço de Imigração. Viajo ainda hoje para o Brasil. Minha mãe está doente.
- Sinto muito, entendo o que quer dizer, mas não há aviões, não há expediente no Serviço de Imigração.
- Eu sei, mas eu tenho que estar no Brasil até amanhã. Meu vôo sai hoje à noite do JFK.
- Não senhora, o seu vôo não terá permissão para sair. Eu sinto muito.
- Tá bom, mas eu preciso ir até o Serviço de Imigração para perguntar o que posso fazer para viajar sem a autorização devida.
- Senhora, sinto muito, a senhora não tem como viajar porque o espaço aéreo do país está fechado. Não há vôos. O Serviço de Imigração está fechado por medidas de segurança nacional
- O senhor acha que eu vou poder chegar até o Serviço de Imigração?
- Não senhora, está tudo fechado.
- O senhor sabe quando eles vão abrir o espaço aéreo?
- Não senhora. - ele tentou sorrir.
Eu não consegui chorar.

Voltei a pé até a Times Square. Sessenta quadras.
O vento cinza, a cidade cinza, o barulho insuportável das sirenes de bombeiros.

Eu precisava falar com o Serviço de Imigração. Parei em inúmeros orelhões. Todos quebrados.
Uma lufada de vento mais forte bateu no meu rosto. Estava sem chapéu, sem luvas, sem cachecol.
E veio o cheiro.
O cheiro de cabelo que queima. Como quando eu era criança e o fósforo queimou meus cílios.
O cheiro de gente, de pele. O cheiro de bicho. Como quando pulava na piscina e a pele quente de sol esfriava rápido.

Meu estômago virou. Era fome, era sede, era o cheiro?
Minhas pernas estremeceram. Minhas entranhas doíam.

No apartamento, arrumei uma mochila.
Separei todos os papéis de imigração e o passaporte.
Dinheiro em cash.
Mandei um email para o Ethan.
Liguei para o Gaudêncio. Venha para cá. Eu vou viajar para o Brasil.
Liguei para o Brasil. Com meu irmão do outro lado, pensei na estratégia mais inteligente possível. Alugar um carro e atravessar o país até o México.
Liguei para todas as locadoras da região. Nenhum carro disponível.
Liguei para a primeira na Filadélfia, a duas horas de trem de Nova York. Reservei um Toyota simples no meu nome para o dia seguinte de manhã. Milhagem livre, tanque cheio. Para devolução em Austin, Texas.
Sentei e esperei.
O Gaudêncio chegou, sentou e esperou. E foi embora.
Desliguei a TV.
O cheiro em todo lugar.
As sirenes em todo lugar.
Aviões rasantes sumiam e apareciam.

A cama ficou pequena, o frio eu nem sentia.
Os riscos da rua no teto tomaram outras formas.
Fiz tudo que quis, sempre. Não me arrependo de nada até aqui.
A roupa lavada, comida na geladeira, as contas do mês pagas.
Um amor vivido, dois países queridos, tantas pessoas inesquecíveis...

Fechei os olhos sorrindo.
É. Seria um bom momento de morrer.

11 de setembro de 2001

Acordei antes do despertador.
Mesmo morando há seis anos em Nova York, o céu super azul anil sempre me enganava no outono. Olhei do nono andar para a árvorezinha da esquina. Não ventava. Uau. Talvez fosse um dia quente enfim...
Entrei e saí do banho.
Liguei a CNN para checar o tempo mais uma vez, agora pela meteorologia. Estava feliz. Mesmo preocupada com a mamãe no Brasil, era sempre bom viajar pra casa.

Olhando a TV de pé, com a escova de dentes dentro da boca, vi as Torres Gêmeas atingidas por um avião.
"Um piloto maluco! Num dia tão azul, como pôde acertar em cheio assim?"
Liguei para mamãe.
"Olha, caiu um avião aqui. Mas eu tô viva, tá tudo bem. Vou pro trabalho e depois vou no Serviço de Imigração. Não, não é terrorismo mãe." - ai que raiva que eu tinha dessa paranóia brasileira de meter os americanos em tudo de ruim que acontecia no mundo! - "Foi só um acidente. Deixa eu ir. Beijo."
Desliguei e engoli o café quente. Não era um acidente, claro.

Desci até a 96th Street para pegar as fotos.
"Isso é coisa dos judeus! Revanche de tantos anos de falta de apoio dos judeus de cá com os de lá" - me afirmou o homem da lojinha de fotos. A pele cor de canela, o turbante, o sotaque oriental. Poderia ser muçulmano. Ou um indiano sik, que também usam turbantes para guardar os cabelos longos. Para mim, tanto faz. Morando nessa panela de gente do mundo todo, eu não enxergava mais as diferenças como tal. Era tudo gente.

O metrô estava estranhamente vazio. Adorei ficar sentada a viagem toda até a 59th Street.
Subi as escadas do metrô pulando os degraus.

E vi a fumaça no céu. Preta, densa, longe, mas muito visível. Cara de fábrica limpando as chaminés, pensei.
O saguão do prédio da ABC Network vazio.

O elevador vazio.
O hall de entrada da Disney, lotado de pessoas assistindo a TV. Durante o meu percurso no metrô, mais um avião atingira as Torres.


Fiquei ali olhando pra cena que já tinha visto de manhã. Num estalo, entrei no meu email e mandei uma mensagem rápida para o Brasil. Estava bem, a cidade estava normal. Tentei ligar a cobrar, não completou.

Um colega saiu correndo encontrar a esposa que trabalhava na primeira torre atingida. Eram cinquenta quadras, por que não pegava um taxi? Porque o trânsito estava interditado até maiores informações.
Sobre o quê? Como assim?


Foi então que o Pentágono surgiu no noticiário.

Fiquei ali. Eu acho estão atacando os Estados Unidos. Eu acho que começou uma guerra.
Não consegui mais ligar para o Brasil.


O administrador do prédio pediu nossos nomes e telefones de contato. Assinamos uma lista imensa e evacuamos o prédio pelas escadas de serviço. Ameaça de bomba? Como assim? Por quê?
Era hora do almoço mas eu não sentia fome. Nem medo.
O trânsito parado, metrôs e ônibus. Uma multidão de pessoas andando.

Uma cara de feriadão.
Andei as quase cem quadras. Não senti as bolhas nos pés.
O dia estava lindo mesmo. Mas agora, o vento soprava e eu não sentia os olhos ardendo.

Liguei a TV, liguei pra lista de amigos. Só consegui falar com o Gaudêncio, que desceu as trinta quadra que nos separavam para sentar diante da TV comigo.

Ficou noite. Era hora de jantar. Eu não tinha fome. Nem medo.
Eu perdi meu horário no Serviço de Imigração. Mas não posso cancelar a viagem.

Consegui uma conexão na internet e mandei mais um email para o Brasil.
Os telefones estavam mudos.
A TV repetia tudo de novo. Desliguei.
Deitei na cama grande demais.
Não senti o frio pelas frestas dos lençóis.
O reflexo da noite no teto. O ruído dos aviões rasantes disparavam meu coração.

Não coloquei o despertador na cabeceira.
Eu acordaria antes de tudo.
Criei o dia seguinte na cabeça:
Tinha que chegar no Serviço de Imigração, pegar minha permissão de viagem, comprar as lembrancinhas pro pessoal, terminar de arrumar a mala.
Tinha que ligar em Londres, tinha que me despedir do Gaudêncio, tinha que falar no Brasil.

Eu tinha que dar um jeitinho brasileiro pra esse terrorismo e aterrisar no Brasil até o dia 15 de setembro.

Eu não ia morrer assim - sozinha, de noite, sem sono, num ataque terrorista.

10.9.06

10 de setembro de 2001

Passei o próximo dia mais uma vez pela cabeça.
Super organizada, sempre.
Cheguei do trabalho um pouco triste, aquela era uma turma legal. O dia seguinte seria a despedida oficial, passar as tarefas pra frente, dar um alô final e sair mais cedo.
Americanos têm isso - muito importante fechar a gestalt. Dizer adeus e muito obrigado pela oportunidade.

As viagens para o Brasil começavam bem antes de entrar no avião. E dessa vez, com a mamãe prestes a tirar um tumor do cérebro, o medo era tão grande que nem notava.

Ethan em Londres, o apartamento vazio, usei o quarto de hóspedes para organizar a mala, os papéis, a cabeça.
Estava chateada com a viagem dele. Depois da lua de mel que tivemos em Portugal, ficou direto na Europa. Eu voltei sozinha para Nova York. Os dias demoravam a passar. Estava muito apaixonada mas pressentia que a doença da minha mãe seria um divisor de águas na minha relação com ele. Eu jamais deixaria meu parceiro sozinho numa situação tão delicada. Guardei isso no fundo do coração. E não trouxe comigo nenhuma foto.

Separei tudo para a imigração:
- A requisição da permissão para viajar
- Passaporte
- Comprovante da taxa da requisição paga
- E todo o meu processo de greencard em xerox. Just in case.

Na manhã seguinte, era só pegar as fotos 5x6 na esquina da 96th Street e de lá, seguir para o Serviço de Imigração, Downtown. Dali, passaria no World Trade Center e faria umas comprinhas para o pessoal de casa. Uma pena a Lydia não estar na cidade. Seria o dia perfeito para sangrias e comida mexicana na Universtiy Place no final da tarde.

Olhei o e-ticket da Varig, decorei o horário e a data pela milésima vez.
- Nova York-São Paulo dia 12 de setembro de 2001.
- São Paulo-Brasília dia 13 de setembro de 2001.
Ficaria com a mamãe no pré-operatório dia 14 de setembro e a cirurgia deveria demorar a manhã do dia 15.
É. Super super organizada. Nada daria errado. A não ser que o tumor fosse maligno e ela nem sobrevivesse a cirurgia. Afastei o pensamento. Estaria de volta em Nova York em meados de outubro.
Seriam quase dois meses sem ver o Ethan. E de novo, mudei o rumo dos pensamentos.

Fiz faxina.
Tomei banho.
Jantei.
A cama era grande demais. O frio pelas frestas dos lençóis. O maldito aquecedor que não aquece.
O reflexo da rua no teto. A sirene. O louco que grita na outra esquina!

- "ahhhh! We´re all gonna die!!!! ahhhhh!!!!"
Saudade do Brasil, medo, saudade do Ethan, medo, ansiedade, medo, medo, medo.
Eu não precisava de despertador, mas coloquei na cabeceira mesmo assim:

08:30 AM

É. Tudo certo. Super organizada sempre.

9.9.06

A lagartixa do elevador

No canto da parede branca do elevador tem uma lagartixa rosa.
A luz acesa faz o olho dela ficar muito preto.
O espelho do elevador reflete o preto do meu olho.

No canto do meu olho tem um silêncio profundo.
O rabo da lagartixa mexe quando ela anda rápido pra trás do espelho do elevador.
Pelo espelho eu vejo de rabo de olho o rosa do meu batom.

O rosa da boca fica mais claro por causa da luz que é branca demais.
Quando chega o segundo andar, a lagartixa se esconde. Some.
O branco da luz vira preto do corredor quando a porta do elevador abre no andar.

O preto do meu olho fica denso.
O silêncio do meu canto fica grande.
Eu entro no corredor e o medo se esconde.

8.9.06

To Lydia

My dearest friend,

I´d like to begin asking for your forgiveness
I am weak and scared
Because all I think is me

Knowing you were sick
Made me want to be closer to you
Just to see your great Texan smile
Your bright green eyes
Your soft, soft hands

I am sorry I never said that
I am sorry I was not there when you needed me most
I am so so sorry for all you have been through
Because I know you could handle it
But still I wish you didn´t have to.

For the years we´ve spent our daily lives together
And the years we´ve already been apart
I love you more

Through my letters complaining about my ordinary life
I saw your brave spirit making fun of yourself
Taking me so serious
Really putting in perspective for me
What matters most
It is not what we learn while in pain
But what we get out of
Love

Thank you for letting me just be
Thank you for laughing at my bad jokes
Thank you for the huge pints of sangria
Over theories about filme, men, family, men, men!

For the care you take of me even at this distance
The wisdom you have of so many things in life!

I am absolutely sure you are my guardian angel
My soulmate sister
Friend
As the deepest meaning of this word can have.

Happy Birthday, Lydia.

Enjoy your conquer.
Your life.
Your house.
Your man.
Your doggie.

Love always,
Fabi

O fantástico real

Ah! Cansei, tá?

Não vou mais ficar aqui falando de ficções.
Deu.

Eu acordo,
Vou pra terapia,
Trabalho à beça.

Tudo normal.

Eu não vou enganar ninguém com esse papo de intuição
De sensação
De movimento certo ou errado.

É a vida, minha gente!
Só issozinho mesmo.

O meu coração bate,
Meu pulmão respira
Tal e qual o sujeito ao lado.

Nadinha de extraordinário acontece aqui.

Os dias são diferentes porque são.
As noites são escuras porque sim.
Eu sou humana.
Tanto quanto as outras mil mulheres que menstruam todo mês.

Juro!
Tudo muito muito comum.

E o sensacional Ipê rosa?
A Lua dourada no céu cor de lápis turquesa?
A risada que ecoa, que dá calor,
Ouvir tua voz?
O óleo na pele seca?
A língua por sobre o doce?
A idéia,
As tantas idéias
De que tudo é simplesmente fantástico?

7.9.06

Eu desconfio que preciso de férias daqui.

Feriado, nada pra pensar!

Na falta de nada melhor,
Vamos à vida!
Saí do trabalho mais cedo ontem.
Tomei banho pensando na roupa.
E aí que nada muda.
Quando piso na rua e fico a fim de dar meia volta,
É isso mesmo que deveria fazer.

De novo, atropelo a antena da intuição.
D´um lugar pr´um outro,
De álcool, de gente, de angústa pra voltar!

Choveu.
O tempo passou.
Na cama, tarde, dormi.

Num universo paralelo,
Chegaria em casa mais cedo
Se não desse nada certo
Vinho tinto e livro médio.

Acordei cansada de não ser o que quero
Trabalhei pouco
Diversão médio.

Eu tenho é que parar de me disfarçar de medíocre
E pular no abismo
Engolindo o coração.
Só.
Sozinha.

O barulho do vento descendo há de ensurdecer
Meu desejo
De só ser.

6.9.06

A fazer

A obra
O cara
Tevê
O Divino
O câmera

O apê
Outro cara
Eleições
Feriado
O livro

Outro livro
O filme
Seu Valdomiro
De novo o cara
Os amigos

Mais amigos
O sono
O sonho
Ah, não, o cara?
A casa

Então,
vou embora.
Pra festa
Pro porre
Pra cama
A minha!

5.9.06

Viver e morrer de paixão

Eu sou uma pessoa apaixonada.
Fácil mesmo.
Caio de quatro pelos meus amigos,
Pelo trabalho que estou fazendo,
O cachorro da vizinha.
O cachorro do cara que me deixa esperando e não liga nunca.

Mas é isso.
Basicamente,
Sou complexa.
Só que fácil de entender.

Estou num estado permanente de apaixonamento.
Ou em busca de.

O meu constante é a instabilidade de um ser que ama loucamente.
O que passa na minha frente, o jeito das pessoas, como elas vivem as vidas...

Quando um dia acordar e nada mais despertar paixão.
Morro, juro que sim.

3.9.06

Chá de fraldas

Eu patinei.
Fui pro trabalho.
Passei no mercado.
Na cobertura daquele prédio,
quando a porta do elevador abriu,
fiquei nua.
As mulheres da minha idade são as mães.
Os homens que estão presentes são os pais.
Os mais velhos todos sentados ali.
Eu - solteira, sem filho, sem marido.
Não exatamente porque eu escolhi assim.

"Eu estou muito feliz mesmo. Uma coisa que eu sempre quis foi ser pai."
Peguei minha bolsa e fui embora.

Dessa vez demorou menos sair do espiral.
Ainda assim, dentro dele parece mesmo que tudo acabou pra mim.
Por que é assim?

2.9.06

Sobre voltar em silêncio da noite.

Eu saí da festa.
É tarde. Tem silêncio e um tentativa de chuva no céu.
Vou indo pra casa, rindo das coisas, pensando em amanhã.
Nessa hora. Bem ali. Bate uma saudade louca de não ser só.
De fazer os comentários do dia, das coisas da noite.
Tantos afazeres para o amanhã.
Mas pra quem?
Na casa, o rosto molhado, a pasta de dente, a toalha dividida.
Vou deitar e dormir um sono comum. De comunhão.

A ausência enche o estômago do enjôo do fumo, do álcool.

Eu sinto uma falta louca de você todo dia.
De todos os dias que eu nunca tive!

Um medo.
Acabou ali?
Do futuro.
Se não for você, quem é?
Ali, Bem ali. Bate um coração que não é mais o meu.

Eu sou saudade envolta em alegria pura de amar você.
E você.
E você.
E vcoê.